Lá no meio dos anos 90, quando não havia redes sociais e essa vida toda universalmente compartilhada que vivemos hoje, eu tinha uma só fonte de informação e referência sobre tudo que dizia respeito à minha identidade lésbica. Essa fonte se chamava Cio, um blog dentro do Mixbrasil, escrito pela Vange Leonel e sua mulher Cilmara Bedaque. Eram textos incríveis, divertidos, politizados, enfim, eu entrava todo dia ali esperando um post novo. Era alguém me dizendo que não apenas estava tudo bem, como estava tudo verdadeiramente fantástico. Que nós, mulheres, éramos muito incríveis.
O tempo passou. Quis que eu viesse morar em São Paulo. Isso aconteceu duas décadas depois de ter Vange Leonel como referência distante pra um bocado de coisa, incluindo aí conselhos sentimentais. Eis então que, graças a vários interesses e visões políticas em comum, nos tornássemos “colegas de Twitter”. Daí pra que eu me encontrasse pessoalmente com ela e Cilmara, hoje uma amiga, foi um pulo. E eu que já era fã, virei mais fã ainda.
E aí vem a notícia hoje que Vange se foi.
Lembro agora das cervejas, das fofocas, das opiniões sempre fortes, de uma entrevista que fiz com ela e outras feministas no bar onde esse grupo de amigos sempre se encontrava/encontra aqui em SP, das trocas de ideias. Vange era foda. Guardava em si uma energia e uma lucidez que ecoavam e reverberam em quem estivesse perto. Ou melhor, ainda ecoa e reverbera, não fosse isso nem estaria escrevendo esse texto aqui.
Todo mundo aprendia e ainda tem a aprender com Vange. Como militante LGBT, ela ouvia a todos e processava as informações ao seu redor da maneira mais “comunista” possível: traduzia todo seu arsenal de conhecimento, o que não era pouco, em palavras muito bem articuladas para o entendimento comum. Escreveu peças, entre elas, As Sereias de Rive Gauche, um clássico da narrativa lésbica. Novas gerações de meninas deviam procurar, ler, entender onde tudo começou.
E bem, como amiga de quem amigo quisesse ser, ela era sempre essa coisa imensamente generosa. Aliás, generosa, taí uma palavra que explica bem Vange Leonel.
Brinquei um dia que quando tivesse dinheiro eu podia pagar pra que ela tivesse uma coluna aqui nesse blog, porque eu sentia falta dela escrevendo, daqueles tempos em que, sem saber, ela ajudava tanta menina a entender que elas não estavam sós.
Hoje, Vange, preciso dizer que é você quem não está só. Estamxs juntxs. Em algum lugar para sempre fixo em nossos corações e mentes. Obrigada por tudo.
E para Cilmara, como bem citou o amigo Pedro Alexandre Sanches, “todo amor que houver nessa vida”.
ps.: A foto acima foi uma que tirei dela, de costas, no Carnaval deste ano. Esse coração colorido que ela continua sendo.